O que são as vilas operárias. E o que resta delas no Brasil
Conjuntos habitacionais construídos para alojar trabalhadores de fábricas só começaram a ser reconhecidos como patrimônio a partir da redemocratização
Publicado originalmente em NEXO Jornal
Em fevereiro de 2019, parte (20 sobrados) de uma vila operária localizada na Rua João Migliari, no bairro do Tatuapé, zona leste da cidade de São Paulo, foi demolida para dar lugar a um empreendimento da construtora Porte Engenharia e Urbanismo. Um abaixo-assinado digital que solicita o tombamento das edificações da vila que ainda não foram demolidas circula entre os moradores da região. Construído por volta da década de 1940, o conjunto de casas seguia sendo ocupado com uso residencial e comercial e tinha suas características preservadas, com as fachadas pintadas de cores semelhantes.
Em um artigo publicado no site do laboratório de pesquisa LabCidade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, os autores Lucas Chiconi e Pedro Mendonça criticam a destruição do casario. Argumentam que a demolição da vila operária irá alterar a paisagem urbana do perímetro, apagando do bairro (que se tornou nobre) a presença operária histórica, além de expulsar a população mais pobre – sem, em contrapartida, trazer adensamento populacional para o eixo de transporte da Radial Leste, como prevê o Plano Diretor de 2014, ou debater os efeitos do empreendimento mais amplamente com a população.
Nos últimos anos, a Porte Engenharia e Urbanismo desenvolveu uma série de empreendimentos na área.
Trata-se de um plano urbanístico privado que ocupa um trecho entre as estações Belém, Tatuapé e Carrão da Linha Vermelha do Metrô, paralelo à Radial Leste, principal via expressa da zona leste, que é a mais populosa da cidade. Foi batizado de “Eixo Platina”, nome da rua que conecta todos os empreendimentos projetados.
Outras vilas de São Paulo
Além das casas da rua João Migliari, que correm o risco de desaparecer por completo, a cidade de São Paulo ainda possui outros exemplares desse modelo de habitação, como a Vila dos Ingleses e a Vila Economizadora, na Luz (região central), e a Vila Andrea Raucci, na Mooca (zona leste).
Talvez a mais famosa, considerada a primeira do estado, a Vila Maria Zélia, no Belém, completou 100 anos em 2017 e é protegida por uma organização atuante, a Associação Cultural Vila Maria Zélia, formada por moradores do bairro, além de ter sido tombada em 1992 pelo patrimônio estadual e municipal.
Distribuído em 11 ruas, o conjunto de centenas de edificações começou a ser construído em 1912 para abrigar os trabalhadores da Companhia Nacional de Tecidos e Juta, do industrial Jorge Street.
Quando surgiram
A vila operária consiste em um conjunto de moradias criado por empresas e indústrias para alojar seus trabalhadores.
Passaram a ter sua construção estimulada pelo Estado brasileiro na virada do século 19 para o 20, como resposta ao crescimento da população trabalhadora nas fábricas e às preocupações com a salubridade e a higiene das cidades.
“O capital privado foi favorecido por meio de isenções de impostos para a promoção de moradias à massa operária crescente, e as vilas foram adotadas como modelo para sanear a cidade e erradicar as moradias insalubres”, disse ao Nexo Flávia Brito, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Elas constituíam pequenas cidades, e contavam internamente com serviços como escola, hospital e mercado.
Ao Nexo, Telma de Barros Correia lembra que conjuntos de casas oferecidas por patrões já existiam desde o período colonial no Brasil. Correia é professora no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP-São Carlos.
Mas foi com a difusão da indústria moderna, a partir de meados do século 19, que a prática se difundiu, tanto no campo – junto a usinas de açúcar e a grandes fábricas têxteis –, como na periferia de cidades, ao lado de fábricas de tecidos, de vidro, de alimentos e outras.
Nesse período, as vilas operárias modificaram de maneira intensa a paisagem de grandes cidades brasileiras em que muitas fábricas se instalaram, como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Salvador.
Também estiveram presentes em cidades surgidas de núcleos criados em torno de fábricas ou empresas de mineração, como Volta Redonda, no estado do Rio de Janeiro, Alumínio, no estado de São Paulo, Paulista, em Pernambuco, e Nova Lima, em Minas Gerais e muitas outras.
Morar em uma vila operária
Quanto à forma, as vilas variavam muito, segundo a professora da USP São Carlos: havia casas em blocos, e também chalés ou bangalôs cercados por jardins.
A maioria, porém, correspondia ao conceito de “moradia econômica”, uma casa pequena, mas dotada de instalações sanitárias e de cômodos arejados e ventilados.
A empresa construía as casas para serem alugadas aos empregados. Muitas acabaram sendo vendidas aos moradores com o passar do tempo. Algumas vezes, a casa se tornava parte de acordos trabalhistas.
Em termos da qualidade da solução de moradia oferecida pelas vilas à classe trabalhadora da época, a professora Telma de Barros Correia afirma que era baixa, mas as casas eram razoáveis, “comparando com as oferecidas pelo mercado”.
“A desvantagem para o morador é que a fábrica costumava usar a casa para interferir na vida familiar – criando regulamentos sobre festas, hóspedes – ou para melhor sujeitar o operário às condições de trabalho e à remuneração oferecida, já que, ao perder o emprego, o trabalhador também perdia a moradia”, disse Correia ao Nexo.
O caminho para a preservação
Parte das vilas operárias no Brasil simplesmente desapareceu. Algumas foram demolidas em função de ampliações das instalações da fábrica e outras alteradas por reformas feitas pelos moradores, após adquirirem as casas.
Mas ainda há alguns exemplares preservados, incluindo casos de tombamento em nível estadual, municipal ou federal, como da Vila Economizadora e da Maria Zélia, em São Paulo, da Avenida Modelo, no Rio de Janeiro, e de vilas em Petrópolis (RJ).
A valorização e o tombamento desse patrimônio pelas instituições de preservação se deram tardiamente.
Segundo Flávia Brito, isso só foi possível a partir da redemocratização, entre o final da década de 1970 e início de 1980, quando a noção de patrimônio se ampliou, “atingindo um leque mais diversificado de bens, para além da perspectiva da identidade nacional”, noção que até então norteava os órgãos de preservação.
Essa ampliação permitiu que arquiteturas “não monumentais” fossem incluídas na lista de bens tombados pelo Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
A partir disso, as formas históricas de morar passaram a ser reconhecidas como exemplo dos processos de transformação urbana das cidades brasileiras e de diferentes períodos econômicos, como o da industrialização.
“As vilas, operárias ou não, encontradas nas cidades brasileiras eram o exemplo mais importante das modificações urbanas e sociais da virada do século 19 para o 20”, disse Brito.
O reconhecimento das vilas operárias como patrimônio também foi fomentado pelo grande número de pesquisas sobre habitação proletária que tomaram conta da academia nos anos 1980, período que coincide com a volta do operariado brasileiro à cena política com a greve dos metalúrgicos do ABC paulista entre 1978 e 1980.
Nesses estudos, a história operária se abriu em múltiplos enfoques, deixando de se voltar exclusivamente para o movimento operário organizado para se ocupar das condições de existência e do cotidiano dos trabalhadores.
Ainda assim, para os gestores públicos, a salvaguarda das vilas tombadas tem sido um grande desafio. Segundo Brito, a preservação implica a compreensão delas como parte dos processos históricos e urbanos das cidades brasileiras.
“Enquanto o patrimônio permanecer capturado na ideia do belo e do velho e distante das políticas urbanas e cotidianas, e, além disso, reforçando seus compromissos com a monumentalidade, as vilas terão dificuldade de reconhecimento”, disse a professora.
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