A Marcha da Família, que hoje faz 50 anos, antecipou golpe. “É um dia triste para memória dos católicos”, diz estudioso

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Há 50 anos acontecia em São Paulo a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. No artigo abaixo, o pesquisador Fernando Altemeyer Júnior, que é doutor em ciência da religião e professor da PUC-SP, relembra os principais fatos da manifestação, que reuniu meio milhão de pessoas, a maioria delas mulheres, com terços na mão. Entre outras coisas, observa que o evento foi organizado por grupos de ultradireita, ligados a movimentos católicos, mas que não tinham apoio oficial da Igreja em São Paulo.

50 ANOS DA LUTA CONTRA A AMNÉSIA

Precisamos fazer hoje um grande exorcismo nacional. Hoje é um dia muito triste para a memória dos católicos e cristãos paulistanos, pois há cinquenta anos foram todos manipulados pelo governo e grupos da ultradireita reacionária e herética, por líderes da TFP.

Em 19 de março de 1964 ocorria a famigerada e tresloucada Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Não queria nenhuma defesa de todas as famílias brasileiras. Só de uma minoria delas. Trouxe em seu bojo como serpente vinda de um ovo podre uma ditadura que iria destruir a pequena liberdade que se estava conquistando pela soberania nacional.

Foram 21 anos de trevas. Uma série de manifestações públicas organizadas por setores conservadores em resposta ao comício realizado no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964, durante o qual o presidente João Goulart anunciou seu programa de reformas de base. Congregou meio milhão de pessoas em repúdio a Goulart e ao regime comunista vigente em outros países.

Em São Paulo, a 19 de março, no dia de São José, padroeiro da família, a marcha foi articulada pelo deputado Antônio Sílvio da Cunha Bueno, juntamente com o padre irlandês Patrick Peyton, nascido no Condado de Mayo, Irlanda, em 9 de janeiro de 1909, fundador do Movimento da Cruzada do Rosário pela Família e ex-capelão estadunidense. Teve o apoio do governador Ademar de Barros, que se fez representar no trabalho de convocação por sua mulher, Leonor Mendes de Barros, e foi organizada pela União Cívica Feminina e pela Campanha da Mulher pela Democracia, patrocinadas pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o IPES (financiado pelos norte-americanos).

A “comissão de frente” era formada por Leonor de Barros, Conceição da Costa Neves e Dulce Salles, entre outras. Houve alguns padres avulsos, e muitas, mas muitas mesmo, mulheres simples com os seus terços na mão, rezando e tentando espantar o medo do comunismo.

Destaque para as falas do deputado federal Plínio Salgado, fundador da Ação Integralista Brasileira, partido de extrema-direita, e do sacerdote Monsenhor Calazans, contra o presidente. Salgado e outros oradores incitaram ao golpe.

Aconteceria depois outra marcha, no Rio de Janeiro, com um milhão de pessoas, no dia 2 de abril, quando o golpe já estava consolidado, para comemorar a vitória dos golpistas. Ambas tiveram o apoio do cardeal Jaime de Barros Câmara, da Arquidiocese do Rio de Janeiro.

Em São Paulo, naquele momento, o arcebispo era o cardeal Carlos Vasconcelos Motta, que permaneceu no cargo até sua transferência em 18 de abril de 1964, aos 73 anos, para ser o primeiro arcebispo de Aparecida.

A Igreja Católica no Brasil, salvo exceções, apoiou explicitamente o golpe antidemocrático, com suporte religioso e ideológico. A conversão viria anos depois pela profecia de dom Helder Câmara, dom Pedro Casaldáliga e, na década de 70, pela vigorosa postura de dom Paulo Evaristo Arns.

Em depoimento, dom Benedito de Ulhoa Vieira, hoje emérito de Uberaba, afirmou que não foi um movimento apoiado pela Igreja de São Paulo. Disse: “A marcha de um milhão de pessoas, naquele tempo, era uma coisa respeitável. Foi promovida por movimentos católicos, mas não partiu do governo do bispado, que era o cardeal Motta. Ele não faria isso. O cardeal sempre teve uma posição assim, muito reservada, a respeito da revolução um pouco antes. Eu acho que isso é histórico, e eu sou testemunha, eu morava com ele, um pouco antes quando se falava em revolução e tal, falaram a ele. Disse uma frase que é antológica: Deus, eu cito textualmente, Deus nos livre das revoluções. Sabemos como elas começam, mas nunca sabemos como acabam. Essa frase é do cardeal Motta, que sempre teve uma posição muito reservada da revolução de 64. Nunca fez propaganda contra, mas, na intimidade, tinha uma reserva muito grande dessa derrubada do Poder Constitucional(…) Nenhum padre do clero de São Paulo tinha ido a essa marcha, sem ele proibir coisa nenhuma. O próprio Calazans que ali foi e esteve, e não negava isso, não era do clero de São Paulo, mas do Clero de Taubaté, e só depois passou para o clero de São Paulo, aliás, uma aquisição muito rica (…) Ter o Calazans como membro do clero de São Paulo, um homem de grande valor intelectual e moral”.

A passagem de 50 anos exige lucidez e memória verdadeira para não se repetir erros graves contra a vida, a pátria e as pessoas humanas. Memória, verdade, justiça. Não se pode confundir golpe e ditadura com revolução. Não trocar a mentira pela verdade.

Fonte: Estadão – Política/ Blog Roldão Arruda

Texto: Fernando Altemeyer Junior

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